Zootecnia
Tapiti - coelho brasileiro
Lebre européia ameaça acabar com o Tapiti, uma espécie brasileira de coelho
Valdemar Sibinelli Revista Terra da Gente - Campinas, SP March 2010
Quando se fala em coelho, do que o leitor se lembra? Daquele que distribui ovos de chocolate para as crianças na Páscoa? Daquele que o mágico tira da cartola? Da lista de famosos do cinema e dos gibis, como o Sansão (da Mônica), o Pernalonga, o Osvaldo (de Walt Disney), o Roger Rabbit? Certamente a gente esquece - ou nem sabe que existe - do tapiti, o único brasileiro entre dezenas de espécies de coelhos e lebres (família Leporidae).
O tapiti é nosso até no nome científico, Sylvilagus brasiliensis, dado por Carolus Linnaeus, o pai da taxonomia moderna, com base num desenho de um exemplar do Nordeste que ilustra uma obra de 1648 sobre a natureza no Brasil. O nome do gênero vem do latim sylva, selva, floresta, e do gregolagos, lebre, coelho. Embora ocorra em outros países do continente, da Argentina ao México, o S. brasiliensis é a única espécie reconhecida como nativa do território brasileiro.
"Historicamente já foram reconhecidas outras espécies, mas todas são atualmente consideradas indistinguíveis de S. brasiliensis", informa o zoólogo João Alves de Oliveira, do Departamento de Vertebrados do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O tapiti - também chamado tapeti, coelho-brasileiro, coelho-do-mato e candimba - é pouco conhecido porque é pouco estudado, e é pouco estudado por motivos que dividem os pesquisadores. O zoólogo Edson Gonçalves de Oliveira, da Zootecnia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), acha que "neste mato tem coelho". Segundo ele, "em verdade esta espécie deveria ser estudada pelas universidades, mas de maneira geral estas só se interessam por animais já domesticados e que atendem ao agronegócio".
O biólogo José Roberto Miranda, da Embrapa Monitoramento por Satélite, não acredita que tem "dente de coelho" nessa história. O pesquisador vê razões para os poucos estudos nos próprio comportamento da espécie: o tapiti tem hábitos noturnos, se esconde em tocas profundas em bosques e matinhas, é pequeno, discreto e solitário. "Ele é ao mesmo tempo comum e raro. Comum porque está por todo o Brasil, mas raro de ser visto por ser uma espécie sem densidade populacional, o que também dificulta as pesquisas", explica.
A única certeza é que o nosso coelho nada tem a ver com os coelhos europeus e as lebres, a origem dos animais hoje domesticados e das diversas raças para a criação comercial (cunicultura). O tapiti tem como 'primos' outras 15 espécies do gênero Sylvilagus, de ocorrência apenas no Novo Mundo, nas três Américas. Eles têm em comum ou tamanho reduzido - a maior espécie é S. aquaticus, cujo peso máximo é 2,6 quilos - e a cauda pequena, em formato de pompom, a razão de serem todos conhecidos também como coelhos-de-cauda-de-algodão (cottontail rabbits, em inglês). Outra característica entre os 'parentes' é o comprimento das orelhas, bem curtas, sobretudo se comparadas às das lebres e de algumas raças comerciais.
Além de curtas, as orelhas do coelho-brasileiro são finas. E a pelagem é escura no dorso e clara na barriga, daí o nome indígena tapiti: ta = pelo; piou pia = barriga e ti = branco.
Não se tem comprovação se o tapiti dorme mesmo de olhos abertos, como reza a cultura popular. Mas se o faz, tem motivos: é presa apetitosa para carnívoros como onças, lobos e cachorros, além de gaviões e águias. Não bastassem tantos predadores, o nosso pequeno e bravo tapiti ainda enfrenta grandes e fortes concorrentes da mesma família dos leporídeos, trazidos para o continente americano e estabelecidos em diversas regiões como espécies exóticas invasoras.
A primeira leva, por enquanto, é uma ameaça distante: o coelho-europeu (Oryctolagus cuniculus) foi introduzido no Chile, mas a barreira intransponível da Cordilheira dos Andes ainda salva o coelho-brasileiro. O mesmo não se pode dizer da lebre-europeia (Lepus europaeus), trazida da Europa para a Argentina em 1896, para fazendas de caça, e para o Chile em 1986, para ser criada em cativeiro e abastecer restaurantes. O bicho escapou para a natureza por falta de controle adequado, foi liberada por criadores arrependidos do negócio ou propositalmente solta para facilitar a caça esportiva. Não teve dificuldades em se instalar em ambientes naturais ou junto a lavouras e vem se espalhando desde então, como uma verdadeira praga agrícola.
No Brasil, a lebre-europeia - ou lebrona, lebre-comum e lebre-marrom, como também é chamada - entrou pelas fronteiras do Sul, já foi vista em todos os estados das regiões Sul e Sudeste e deve estar alcançando o Centro-Oeste por Goiás, embora não exista um mapa atualizado da 'invasão'. O tapiti não tem chance nesta disputa: é pequeno, tem no máximo 1,5 kg, permite aproximação e tem pouco fôlego para a corrida. A lebrona é grande, chega a 7 kg, tem as patas traseiras grandes e fortes, com impulsão para saltar a dois metros de altura e a cinco de distância, sempre em ziguezague e a uma velocidade de até 65 km por hora. "É uma máquina feita para correr e saltar", compara José Roberto Miranda. "Não há animal, nem cachorro de caça, que alcance uma lebre".
Além disso, a lebre-europeia tem a visão, a audição e o olfato bem desenvolvidos e é desconfiada, não permite aproximação. Há registros de brigas de machos na primavera, com acirradas brigas de socos, à semelhança do 'boxear' dos cangurus.
A espécie pode se refugiar em tocas de tatus ou de outros mamíferos, e também invade a 'casa' do tapiti, expulsando-o com família e tudo. O coelho-brasileiro, diferente das raças de coelhos comerciais, costuma se reproduzir apenas uma vez por ano. A fêmea cava a toca, forra com o próprio pelo e, em geral, tem só 2 filhotes, que nascem de olhos abertos e se tornam independentes em 3 semanas. Já a lebrona tem 2 ninhadas por ano nos países temperados e pode ter mais na zona tropical, dada a ausência de neve. A fêmea faz uma pequena depressão superficial no solo ou amassa capim para acomodar os filhotes, que costumam ser 4 ou 5. Eles também nascem de olhos abertos e com pelos longos, podendo suportar a exposição à chuva ou ao frio.
Em suas pesquisas de campo, Miranda ouviu vários relatos sobre esta competição entre as duas espécies pelo abrigo, inclusive com a morte do coelho-brasileiro. No município catarinense de Três Barras, os moradores consideram que a invasora extinguiu localmente o tapiti, mesmo não havendo problemas de espaço e de oferta de comida para todos. O mesmo aconteceu em algumas localidades argentinas.
As pessoas também têm razões para se preocupar com o avanço da lebrona. Ela prefere áreas abertas, desmatadas, invade as plantações e come de tudo, até o feno do gado e as mudas jovens de pinus, em áreas de reflorestamento. A espécie se deu bem no clima brasileiro, a par de contar com topografia favorável mais comida à vontade - e fácil - o ano inteiro, sem as agruras do inverno europeu. Miranda "levanta a lebre": acha que logo ela vai invadir também a Amazônia. "A expansão da fronteira agrícola e da pecuária garante casa e comida para a lebre-europeia. Ela só não vai entrar onde a floresta amazônica ainda está preservada", arrisca. E propõe uma alternativa de manejo: "Uma solução pode ser a permissão de caça ao animal exótico e invasor, como é feito em diversos países europeus onde ela não é nativa e também se tornou invasora".
Controlar a lebrona seria a salvação da lavoura e do coelho-brasileiro, ou seja, como "matar dois coelhos com uma cajadada só".
Fonte do texto: plantadiretobrasil
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Foto de J.B. Higgott 2005. Tapiti - Sylvilagus brasiliensis |
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Foto tirada por Renata Pitombo em Dakota do Norte - USA 2012 - Sylvilagus floridanus |
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